sábado, abril 01, 2006

Agenda mental

Eu conheço uma pessoa que tem uma das vidas mais confusas que eu já vi. Porque tudo o que essa pessoa escolheu pra ser, viver, deu errado. Cada decisão parecia ser à luz no final do túnel ou a descida para um enorme buraco. Geralmente, atolado na escuridão, João Pessoa se comunicava consigo mesmo para encontrar Deus ou uma escapatória para seus pensamentos, tantos pensamentos irreais, que só deixavam-no tonto. A última coisa que tinha dado errado era um negócio com materiais de construção. O que adiantava ter uma idéia brilhante, pois todo mundo precisa construir e ter onde morar, um teto fresco e de alvenaria de preferência, se todo mundo só queria viver em barracas de lona? João Pessoa se viu pobre demais com 45 anos de idade. E junto com sua pobreza tinha mais de milhão, milhão de outros miseráveis sem fortuna ou sorte que rumavam todos num zigue-zague sem destino pelo país em busca de algo pra comer e um trabalho que fosse real e cansativo. João Pessoa teve filhos. As meninas todas já casadas não falam mais com ele, foram embora cada uma com seu marido e uma mágoa muito grande com ele por causa de Fulô, sua mulher, a décima que teve, que espantou todo mundo de casa com seu mau humor, fedor e péssima culinária. Foi a única mulher de João Pessoa que não morreu. Ele que sofreu. Fulô dava chifre no velho quase todos os dias porque tinha muito fogo na barriga. E cada bimbada que ela dava era como colocar mais lenha naquele corpinho de 30, fogueira que o João Pessoa mandava ver pelo menos uma vez ao mês e só. Fulô era uma branquela gorda com os dedos amarelos que tinha os peitos mais lindos do mundo e só.
Quando os meninos de João Pessoa cresceram, cada um virou algo ruim. Jogador, gigolô, vagabundos, um deles virou bandido e estava preso por roubar uma mercearia. O filho de João Pessoa roubava por fome. E nenhum deles conseguia ajudar o pai com algum trocado ou coisa parecida e a vida dura na casinha de chão só tinha sentido porque o coração daquele velho era muito forte. Quando se tem um coração sofrido daqueles, a esperança é a última coisa que morre. Fulô fugiu um dia e deixou o velho com uma dívida no bar de uns R$67. Mais uma pra ele. Dono de um famoso gancho de direita, João Pessoa tinha sido boxeador amador no clube Remo, em sua cidade. Lutou e treinou feito cão e adorava tomar pancada na cabeça. O Boxe e o treinador Celso foram os únicos que deram comida e banho pra ele. Cada pancada na cabeça era um alívio. Depois do treino tinha um prato de arroz com feijão, pedaço de carne e batatas. Uma delícia pros punhos! E o treinador não fazia rogado. Levava João Pessoa pra comer uma puta ou tirar uma casquinha com seu Kharman Guia.
Com 38 anos de idade perdeu um dedo de cada pé. Estava olhando um avião no céu, aquele pássaro do futuro com barulho de pum elétrico, em cima de um cavalo emprestado. O cavalo viu uma cobra e deu um pinote, João Pessoa caiu e o cavalo pisou cada dedo com cada casco, uma dor indescritível com o esmagamento dos dedos e mais uma hora de viagem a cavalo até chegar no pronto-socorro. Sem os dedos dos pés João Pessoa conseguiu uma aposentadoria por invalidez que ele nunca recebeu.(Para todo efeito o soldo dele está nas mãos de algum filho da puta rico que desviou dele e de mais uns 40 beneficiados uma aposentadoria de R$200.). Quando tinha uns 19 anos João Pessoa teve o ânus perfurado depois de descer de um caminhão de cana e tropeçar em uma pedra, acionar sem querer o motor da trituradeira de caldo e fazer o toco de cana entrar com tudo no seu fiofó, aquele toco que sobra sempre pros azarados.
Pensei em mim, em como minha vida é boa e os maus pensamentos foram embora. Silêncio.